sexta-feira, 13 de junho de 2008

A Paz Interior


A paz, invadiu o meu coração De repente me encheu de paz como se o vento de um tufão arrancasse os meus pés do chão onde eu já não me enterro mais A paz, fez o mar da revolução invadir meu destino A paz, com aquela grande explosão Uma bomba sobre o Japão, fez nascer um Japão na paz Eu pensei em mim, eu pensei em ti, eu chorei por nós Que contradição, só a guerra faz nosso amor em paz! Eu vim, vim parar na beira do cais onde a estrada chegou ao fim, onde o fim da tarde é lilás onde o mar arrebenta em mim, o lamento de tantos ais! (Gilberto Gil)


A palavra-chave da letra desta música, por mais paradoxal e contraditória que pareça, é a guerra. O poeta, quando disse "Que contradição, só a guerra faz nosso amor em paz!". Que amor e que guerra estão sendo travadas? Poderíamos interpretar a letra da música como sendo dois amantes, que têm lá seus problemas, como se vê tanto em novelas de televisão, brigam e então se faz aparecer a paz. Mas sinto que esta letra transcende um pouco a relação entre duas pessoas. Na realidade ela trata da relação de uma pessoa consigo mesma. A "grande contradição", já vem sendo cantada, já vem sendo ensinada, já vem sendo demonstrada há milhares de anos.

Esta grande contradição da busca da paz através da guerra foi o próprio Krishna, há milhares de anos passados, que na tão conhecida Bagavád-Gita onde Ele, como Mestre encarnando a voz de Deus, orienta Arjuna, o príncipe, na sua grande batalha. E que batalha é essa? Khrishna diz, dirigindo-se ao príncipe, "deves estar atento ao teu dever. Tu és o príncipe da casa dos guerreiros. Tens por dever combater com resolução e heroísmo. O dever de um soldado é combater e combater bem. O combate justo honra o guerreiro, e abre-lhe a porta do céu. Se desistires da legítima luta pela verdade e pelo direito, cometerás um grande crime contra a tua honra, contra o teu dever e contra o teu povo".
A guerra, neste caso, é travada contra o nosso ego que é, na realidade, o grande inimigo e o grande empecilho à nossa paz interior. Enquanto nós não vencermos esta guerra, enquanto esta batalha não for vencida, enquanto não compreendermos essa grande contradição que a guerra traz, não vamos ver a paz invadindo o nosso coração, não vamos ver de repente o nosso ser se encher de paz. Então, por mais contraditório que pareça, por mais paradoxal que pareça, a paz interior começa com uma guerra, uma grande batalha. Esta batalha leva a vida inteira, e não somente esta vida terrena, limitada, mas também em outros planos da existência.
O nosso processo de aprimoramento espiritual não tem fim, porque no momento em que acharmos que alcançamos a perfeição, na realidade vamos simplesmente passar o atestado do quão limitados e infantis somos, em acreditar que chegamos ao ápice de maturidade, de compreensão. Na realidade, a nossa busca eterna vai ser cada vez mais aproximarmo-nos daquele Manancial da Verdade, Manancial da Paz, aquele grande Oceano, Deus, o nosso Criador, que é objeto da busca de todos nós. Por qualquer nome que O chamemos, de qualquer forma que O vejamos, na realidade este Oceano ilimitado se encontra à nossa disposição; mas o esforço de chegarmos até Ele passa por esta batalha que Krishna diz, é uma luta legítima. E Ele apresenta os instrumentos para que esta batalha possa ser vencida.

Todos os Profetas e Mensageiros Divinos, e propositadamente escolhi Krishna, porque realmente simboliza muito bem esta questão da luta contra o ego, desta vitória contra a nossa realidade inferior, contra o nosso ego que pode simbolizar também o nosso lado material, o nosso apego a este mundo dos nomes, das paixões, dos quereres. Na realidade quem é o nosso ego a não ser o momento em que nós volvemos o espelho do nosso coração, o espelho da nossa alma, para as coisas terrenas e limitadas. Não me refiro aqui ao "ego" do elemento da nossa psiquê e sim ao ego como sendo sinônimo de apego às coisas egoístas, apego aos quereres, apego às nossas vontades. No momento em que este espelho se volve à limitação, esta coisa chamada ego, é refletido neste espelho que é o nosso coração, a nossa alma, pois é capaz de refletir tudo aquilo que se coloca a sua frente. Se nós colocarmos as coisas materiais, se colocarmos os nossos quereres, as nossas vontades, as nossas paixões, ele vai refletir isto; mas se nós volvermos este espelho para coisas mais sublimes, mais celestiais, coisas que nos levam a nos desprendermos deste mundo, a nos desapegarmos, apesar de estarmos vivendo nesta existência, vamos nos surpreender com a alegria e paz que alcançaremos. Bahá'u'lláh destaca um poema persa que diz "sábio é aquele que no mar se acha seco, aquele que no fogo esfria" ou seja, que independe do meio que o cerca: ele é o que ele é. Ele não é um reflexo, um resultado do meio que o cerca, mas simplesmente aquilo que ele é. E esta é a nossa busca, esta é a verdadeira paz.

O primeiro instrumento que todas as religiões, quer do passado, quer do presente, quer do futuro ensinaram, ensinam ou ensinarão, se refere a nós próprios, à nossa transformação individual. O grande desafio é se perceber que o que falta para alcançar a nossa paz não é aquilo que a gente fala normalmente, como por exemplo "olha, minha vida seria tão boa se fulano desaparecesse da minha frente, ele me atrapalha, me atazana a vida o tempo inteiro e se eu conseguisse me livrar de fulano, beltrano ou de sicrano, eu alcançaria a paz. Porque eu só tenho este sujeito me atrapalhando a vida". Colocamos fora de nós o campo da batalha, enquanto que a batalha tem que se travada dentro de nós. Desde pequenos nos negamos a desenvolver esta batalha, esta luta, esta guerra. Porque ela dói. É uma batalha muito difícil. Porque não só você tem que lutar contra aqueles que são seus personagens internos, que são os valores que você trouxe dos seus pais, dos seus familiares, são os valores que a sociedade lhe deu, e isto é uma batalha muito difícil porque perder ou negar estes valores, ou transformá-los em algo diferente é realmente muito dolorido, e ninguém quer sofrer.
Deus, o Criador, não é um velhinho barbudo, sentado em um trono com um cetro na mão, mandando raios que fazem morrer, nascer, crescer e desaparecer. Não seria o desígnio Dele que nós tivéssemos que sofrer, porque se Ele é todo bondade, todo misericórdia, se Ele é amor, perdão, se Ele é tudo aquilo que consideramos como as qualidades e elementos positivos, o sofrimento não pode ser um elemento maquiavelicamente colocado na criação: "olha, tem isto tudo de bom mas vocês vão ter que sofrer um pouquinho para ver o que é bom para tosse". Se Ele não sofre, porque iria querer que Suas criaturas sofressem? Na realidade para evitar que suas criaturas sofressem, e o sofrimento nada mais é do que o nosso comportamento inadequado perante as grandes situações que a vida nos apresenta, Ele mandou-nos um manual. É a mesma coisa que um carro: se o sujeito não sabe que tem que tem 2a, 3a , 4a ou 5a marcha ele fica só na 1ª. O motor sofre, o ouvido sofre, as peças sofrem, todo mundo sofre. Parece que aquele carro é uma coisa horrível! "Meu Deus do céu, ô bicho danado de fazer barulho e não sair do lugar, fica o tempo todo preso, engasgando!". Na realidade a falta do conhecimento do automóvel levaria à má utilização do mesmo.

Um dos elementos que podem ser considerados na tarefa de transformar palavras em ações é a oração. A oração tem o poder de transformação sobre nós e o poder de assegurar uma nutrição para nosso ser interior.

No momento em que buscamos na oração um elemento de reforço interior, o bichinho do lado de cá que fica o tempo todo dizendo "olha, você merece, você é o máximo, você tem que ter toda a atenção do mundo; afinal, você é um indivíduo que tem a sua própria identidade, então que estória é esta de você se perder no meio do mundo?", passamos a ter a tendência de olhar para este bichinho e dizer "bom, na verdade, seria tão bom se a minha oração fosse atendida na forma como eu quero, como eu espero!". É aí que nos perdemos, porque, na realidade, não estamos cumprindo com o propósito que a oração tem. Se a oração significa comungar, significa este trocar de sentimentos e energias com um Ser superior, é daí que deriva a força para travarmos esta batalha. Esta força tem que vir de uma busca divina. A oração nos ajuda a fazer o ajuste dos nossos desejos para se conformarem com uma vontade superior.

Estamos agora tratando da batalha num nível diferente. Estamos agora buscando um aliado muito forte nesta batalha. Porque este aliado forte é a crença em Deus. No entanto, se falamos em oração e ela parece algo muito mecânico e automático, temos que estar atentos! Nossa sociedade também buscou transformar as coisas mais etérea, não palpáveis, em coisas que não merecem a nossa atenção, porque não são concretas, não são lógicas, não são racionais. A oração também se tornou uma coisa muito mecânica. A mecanicidade da oração fez com que ela perdesse o valor de algo que é capaz de nos mover.
O resgate de nossa espiritualidade passa por esta reconexão com Deus através da oração e meditação. Ao nos reconectarmos com um espírito vibrante e radiante, temos em mãos um instrumento fabuloso para travar a nossa guerra e alcançar as margens do oceano da paz interior.

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